domingo, 15 de maio de 2011

Imprescindível

Foi em uma noite de show, como todas as outras em que toco, que avistei aqueles profundos olhos. O modo como eles me observavam, me invadiam e, arrisco dizer, me ultrapassavam, era algo silencioso, perturbador e irresistível. Pode parecer presunção minha, mas aquele jeito de mulher e sorriso de menina, ao mesmo tempo enigmático e transparente, deixava nítido que o porto de seus sonhos era o meu olhar. E eu sorria ... sorria cada vez que ela desarmava-se e deixava transparecer  em seus olhos o desespero, a angustiante força que fazia para esconder de mim e de todos o quanto me amava. Seu olhar era tão ingênuo que intimidava e inibia meu espírito cafajeste. O modo como ela sorria e abaixava a cabeça, tão docemente, toda vez que seu olhar em minha direção era flagrado por mim , me tornava totalmente incapaz de qualquer artimanha para conquistá-la. Como eu não sei, mas ela me neutralizava.
E assim a noite tomou seu rumo ... ela se comportando discretamente, fazendo o possível para não ser notada, mas mal sabia, que qualquer esforço para tal seria em vão, pois eram seus olhos que atraiam a atenção. A cada música que se passava, seus olhares se tornavam mais intensos e apaixonantes, só que o compromisso me prendia longe dele e a única coisa que restava era torcer para ela permanecer até o show acabar.Porém não ocorreu, faltando poucas músicas para encerrar o repertório, ela olhou o relógio e viu que não dava mais tempo. Então com um olhar diferente de todos que ela havia lançado, de mulher decidida e determinada, ela foi embora deixando para trás todo o topor que ela me despertou e levando consigo todo o amor que seus olhares e gestos demonstravam sentir por mim. E sempre foi assim, ela nunca precisou dizer uma só palavra para que eu tivesse certeza do amor que sentia e que eu nunca seria capaz de retribuir. Com toda a honestidade acho que ela não se importava com isso, ela me amava e só não queria que eu soubesse disso. Doce ilusão ...

* Pauta para o bloinquês
67ª edição conto-história

terça-feira, 3 de maio de 2011

Epifania

Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns anos. Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania.

* Caio Fernando Abreu